Textos esclarecedores
Textos esclarecedores

 

 

 

Abaixo há alguns textos que podem auxiliar o trabalho dos professores na recuperação de estudos  - alfabetização. Aproveite!

 

TEXTOS:

 - Idéias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não tem consciência delas  (*Telma Weisz. In O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo, Ática, 1999.)

- Como se aprende a ler e escrever ou, prontidão, um problema mal colocado. Telma Weisz (Este texto é um fragmento do artigo "Como se aprende a ler e escrever ou prontidão, um problema mal colocado", publicado em Ciclo Básico, Cenp/Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, 1988.

 

 

 

Idéias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não tem consciência delas

(*Telma Weisz. In O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo, Ática, 1999.) 

  Quando analisamos a prática pedagógica de qualquer professor, vemos que, por trás de suas ações, há sempre um conjunto de idéias que as orienta. Mesmo quando ele não tem consciência dessas idéias, dessas concepções, dessas teorias, elas estão presentes.

Para compreender a ação do professor é preciso analisá-la com o objetivo de desvelar os seguintes aspectos:

  • qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do conteúdo que ele espera que o aluno aprenda;
  • qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do processo de aprendizagem, isto é, dos caminhos pelos quais a aprendizagem acontece;
  • qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, de como deve ser o ensino.

A teoria empirista - que historicamente é a que mais vem influenciando as representações sobre o que é ensinar, quem é o aluno, como ele aprende e o que e como se deve ensinar - se expressa em um modelo da aprendizagem conhecido como de "estímulo-resposta". Esse modelo define a aprendizagem como "a substituição de respostas erradas por respostas certas". A hipótese subjacente a essa concepção é a de que o aluno precisa memorizar e fixar informações - as mais simples e parciais possíveis e que devem ir se acumulando com o tempo. O modelo típico de cartilha está baseado nisso.

As cartilhas trabalham com uma concepção de língua escrita como transcrição da fala: elas supõem a escrita como espelho da língua que se fala. Seus "textos" são construídos com a função de tornar clara (segundo o que elas supõem) essa relação de transcrição. Em geral, são palavras-chave e famílias silábicas, usadas exaustivamente - e aí encontram-se coisas como "o bebê baba na babá", "o boi bebe", "Didi dá o dado a Dedé". A função do material escrito numa cartilha é apenas ajudar o aluno a desentranhar a regra de geração do sistema alfabético: que b com a dá ba, e por aí afora.

Centrada nessa abordagem que vê a língua como pura fonologia, a cartilha introduz o aluno no mundo da escrita apresentando-lhe um texto que, na verdade, é apenas um agregado de frases desconectadas. Essa concepção de "texto" para ensinar a ler está tão internalizada no imaginário do professor que, certa vez, uma professora que se esforçava para transformar sua prática documentou em vídeo uma aula e me enviou, para mostrar como já conseguia trabalhar sem a cartilha. A atividade era uma produção coletiva de texto na lousa. O texto produzido pelos alunos e grafado pela professora era o seguinte:

    

O sapo

O sapo é bom.

O sapo come inseto.

O sapo é feio.

O sapo vive na água e na terra.

Ele solta um líquido pela espinha.

O sapo é verde.

 

Como se pode observar, cada enunciado é tratado como se fosse um parágrafo independente. Exigências mínimas de coesão textual, como não repetir "o sapo" em cada enunciado, nem sequer são consideradas. Só na quinta frase aparece, pela primeira vez, um pronome para substituir "o sapo". E na sexta frase, lá está ele de novo. Seria fácil concluir que a professora é que não sabe escrever com um mínimo de coerência e coesão. Mas não era esse o caso. Além de saber escrever, era uma ótima professora: empenhada e comprometida com seu trabalho e seus alunos. Apenas havia interiorizado em sua prática o modelo de "texto" que caracteriza a metodologia de alfabetização expressa nas cartilhas. E de tal maneira que nem sequer tinha consciência disso: foi preciso tematizar sua prática a partir dessa situação documentada para que ela pudesse se dar conta.

Como a metodologia de ensino expressa nas cartilhas concebe os caminhos pelos quais a aprendizagem acontece

Poderíamos dizer, em poucas palavras, que na concepção empirista o conhecimento está "fora" do sujeito e é internalizado através dos sentidos, ativados pela ação física e perceptual. O sujeito da aprendizagem seria "vazio" na sua origem, sendo "preenchido" pelas experiências que tem com o mundo. Criticando essa idéia de um ensino que se "deposita" na mente do aluno, Paulo Freire usava uma metáfora - "educação bancária" - para falar de uma escola em que se pretende "sacar" exatamente aquilo que se "depositou" na cabeça do aluno.

Nessa concepção o aprendiz é alguém que vai juntando informações. Ele aprende o ba, be, bi, bo, bu, depois o ma, me, mi, mo, mu e supõe-se que em algum momento, ao longo desse processo, tenha uma espécie de "estalo" e comece a perceber o que é que o ma, o me, o mi, o mo e o um têm em comum.Acredita-se que ele seja capaz de aprender exatamente o que lhe ensinam e de ultrapassar um pouco isso, fazendo uma síntese a partir de uma determinada quantidade de informações. Na verdade, o modelo supõe apenas a acumulação. Os professores é que, convivendo com alunos reais o tempo todo, acabam encontrando na figura do "estalo" a resposta para certas ocorrências aparentemente inexplicáveis. Porque sabem que alguns entendem o sistema logo que aprendem algumas poucas famílias silábicas, enquanto outros chegam ao Z de zabumba sem compreendê-lo. E já que não têm como entender essas diferenças, buscam explicações no que se convencionou chamar de "estalo". Freqüentemente dizem: "O menino deu o estalo" ou "Ainda não deu o estalo, mas uma hora vai dar".

Para se acomodar a essa teoria, o processo de ensino é caracterizado por um investimento na cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização da memória de curto prazo para reconhecimento das famílias silábicas quando o professor toma a leitura. Essa forma de trabalhar está relacionada à crença de que primeiro os meninos têm de aprender a ler e a escrever dentro do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para depois adquirir uma leitura compreensiva. Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a fazer barulho com a boca diante das letras para depois poder aprender a ler de verdade e a produzir sentido diante de textos escritos.

Assim, os três tipos de concepção a que nos referimos no início deste capítulo se articulam para produzir a prática do professor que trabalha segundo a concepção empirista: a língua (conteúdo) é vista como transcrição da fala, a aprendizagem se dá pelo acúmulo de informações e o ensino deve investir na memorização. Na verdade, qualquer prática pedagógica, qualquer que seja o conteúdo, em qualquer área, pode ser analisada a partir deste trio: conteúdo, aprendizagem e ensino.

Para mudar é preciso reconstruir toda a prática a partir de um novo paradigma teórico

Quando se tenta sair de um modelo de aprendizagem empirista para um modelo construtivista, as dificuldades de entendimento às vezes são graves. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento não é concebido como uma cópia do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupõe uma atividade, por parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes. Isso vale tanto para o aluno quanto para o professor em processo de transformação.

Se o professor procura inovar sua prática, adotando um modelo de ensino que pressupõe a construção de conhecimento sem compreender suficientemente as questões que lhe dão sustentação, corre o risco, grave no meu modo de ver, de ficar se deslocando de um modelo que lhe é familiar para o outro, meio desconhecido, sem muito domínio de sua própria prática - "mesclando", como se costuma dizer.

O equívoco mais comum é pensar que alguns conteúdos se constroem e outros não. O que, nessa visão "mesclada", vale dizer que uns precisariam ser ensinados e outros, não. Em outros casos o modelo empirista fica intocado e as idéias que as crianças constroem em seu processo de aprendizagem são distorcidas a ponto de o professor vê-las como conteúdo a ser ensinado.

Um exemplo disso são os professores que, encantados com o que a psicogênese da língua escrita desvendou sobre o que pensam as crianças quando se alfabetizam, passaram a ensinar seus alunos a escrever silabicamente. Que raciocínio leva a uma distorção desse tipo? Se os alunos têm de passar por uma escrita silábica para chegar a uma escrita alfabética, ensiná-los a escrever silabicamente faria chegar mais rápido à escrita alfabética, pensam esses professores. Essa perspectiva só pode caber num modelo empirista de ensino, cuja lógica intrínseca é a de organizar etapas de apresentação do conhecimento aos alunos. Essa lógica não faz nenhum sentido num modelo construtivista.

Outro tipo de entendimento distorcido, mais influenciado por práticas espontaneístas, é o seguinte: diante da informação de que quem constrói o conhecimento é o sujeito, houve professores que entenderam que a intervenção pedagógica seria, então, desnecessária. Se é o aluno quem vai construir o conhecimento, o que os professores teriam a fazer dentro da sala de aula? E passaram a não fazer nada. Como se vê, é fácil nos perdermos em nossa prática educativa quando não nos damos conta do que orienta de fato nossas ações.Ou melhor, de quais são as nossas teorias em ação.

Conteúdos escolares são objetos de conhecimento complexos, que devem ser dados a conhecer, aos alunos, por inteiro

A mudança na concepção dos conteúdos oferecidos pela escola provoca, de imediato, uma transformação enorme na oferta de informação aos alunos.Vamos continuar com o exemplo da língua escrita para tornar mais claro o que queremos dizer. Se o professor parte do princípio de que a língua escrita é complexa, dentro de uma concepção construtivista da aprendizagem ela deve ser - mesmo assim e por isso mesmo - oferecida inteira para os alunos. E de forma funcional, isto é, tal como é usada realmente. Quando alguém aprende a escrever, está aprendendo ao mesmo tempo muitos outros conteúdos além do bê-á-bá, do sistema de escrita alfabética - por exemplo, as características discursivas da língua, ou seja, a forma que ela assume em diferentes gêneros através dos quais se realiza socialmente.

Pensando assim caberá ao professor criar situações que permitam aos alunos vivenciar os usos sociais que se faz da escrita, as características dos diferentes gêneros textuais, a linguagem adequada a diferentes contextos comunicativos, além do sistema pelo qual a língua é grafada, o sistema alfabético. Para alguém ser capaz de ler com autonomia é preciso compreender o sistema alfabético, mas isso apenas lhe confere autonomia. Qualquer um pode aprender muito sobre a língua escrita mesmo sem poder ler e escrever autonomamente. Isso depende da oportunidades de ouvir a leitura de textos, participar de situações sociais nas quais os textos reais são utilizados, pensar sobre os usos, as características e o funcionamento da língua escrita.

Para os construtivistas - diferentemente dos empiristas, para quem a informação deveria ser oferecida da forma mais simples possível, uma de cada vez, para não confundir aquele que aprende - o aprendiz é um sujeito, protagonista do seu próprio processo de aprendizagem, alguém que vai produzir a transformação que converte informação em conhecimento próprio. Essa construção, pelo aprendiz, não se dá por si mesma e no vazio, mas a partir de situações nas quais ele possa agir sobre o que é objeto de seu conhecimento, pensar sobre ele, recebendo ajuda, sendo desafiado a refletir, interagindo com outras pessoas.

Quando se acredita que o motor da aprendizagem é o esforço do sujeito para dar sentido à informação que está disponível, tem-se uma situação bastante diferente daquela em que o aprendiz teria de permanecer tranqüilo e com os sentidos abertos para introjetar a informação que lhe é oferecida, da maneira como é oferecida. Num modelo empirista a informação é introjetada, ou não. Num modelo construtivista, o aprendiz tem de transformar a informação para poder assimilá-la. Concepções tão diferentes dão origem, necessariamente, a práticas pedagógicas muito diferentes.

Afirmar que o conhecimento prévio é base da aprendizagem não é defender pré-requisitos

Para aprender alguma coisa, é preciso já saber alguma coisa - diz o modelo construtivista. Ninguém conseguirá aprender alguma coisa se não tiver como reconhecer aquilo como algo apreensível. O conhecimento não é gerado do nada, é uma permanente transformação a partir do conhecimento que já existe. Essa afirmação - a de que o conhecimento prévio do aprendiz é base de novas aprendizagens - não significa a crença ou defesa de pré-requisitos.Tampouco esse tipo de conhecimento se confunde com a matéria ensinada anteriormente pelo professor.

Se, por um lado, é o que cada um já possui de conhecimento que explica as diferentes formas e tempos de aprendizagem de determinados conteúdos que estão sendo tratados, por outro sabemos que a intervenção do professor é determinante neste processo. Seja nas propostas de atividade, seja na forma como encoraja cada um de seus alunos a se lançar na ousadia de aprender, o professor atua o tempo inteiro.

Não informar nem corrigir significa abandonar o aluno à própria sorte

Como já vimos, diante de um corpo de idéias tão novo como a concepção construtivista da aprendizagem e o modelo de ensino mediante a resolução de problemas, o professor está também na posição de aprendiz. No entanto, o conhecimento pedagógico é produzido coletivamente, o que permite aos professores hoje aprender a partir do que outros já aprenderam e tomar cuidado com erros já cometidos por outros.

Um erro que precisa ser evitado por suas graves conseqüências é o desvio espontaneísta: como é o aluno quem constrói o conhecimento, não seria necessário ensinar-lhe.A partir dessa crença o professor passa a não informar, a não corrigir e a se satisfazer com o que o aluno faz "do seu jeito". Essa visão implica abandonar o aluno à sua própria sorte. E é muito importante que o professor compreenda o que significa, do ponto de vista da criança, o "vou fazer do meu jeito".

Vamos usar a alfabetização novamente para exemplificar. Quando uma criança entra na escola ainda não alfabetizada, tanto ela quanto o professor sabem que ela não sabe ler nem escrever. Ao propor que se arrisque a escrever do jeito que imagina, o que o professor na verdade está propondo é uma atividade baseada na capacidade infantil de jogar, de fazer de conta. Num contrato desse tipo - que reza que o aluno deve escrever pondo em jogo tudo o que sabe e pensa sobre a escrita - o professor deve usar tudo o que sabe sobre as hipóteses que as crianças constroem a respeito da escrita para poder, interpretando o que o aluno escreveu, ajudá-lo a avançar. Dentro desse contrato, quem "faz de conta" é a criança. Nesse espaço em que a criança escreve "do seu jeito" o papel do professor é delicado. Mas é semelhante ao de alguém adulto que participa de uma brincadeira de faz de conta sem entrar nela.Ao professor cabe organizar a situação de aprendizagem de forma a oferecer informação adequada. Sua função é observar a ação das crianças, acolher ou problematizar suas produções, intervindo sempre que achar que pode fazer a reflexão dos alunos sobre a escrita avançar.O professor funciona então como uma espécie de diretor de cena ou de contra-regra e cabe a ele montar o andaime para apoiar a construção do aprendiz.

 

 

 

Como se aprende a ler e escrever ou, prontidão, um problema mal colocado

Telma Weisz (Este texto é um fragmento do artigo "Como se aprende a ler e escrever ou prontidão, um problema mal colocado", publicado em Ciclo Básico, Cenp/Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, 1988.

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A criança e seu processo de alfabetização

As pesquisas sobre o processo de alfabetização vêm mostrando que, para poder se apropriar do nosso sistema de representação da escrita, a criança precisa construir respostas para duas questões:

1. O que a escrita representa?

2. Qual a estrutura do modo de representação da escrita?

A escola considera evidente que a escrita é "um sistema de signos que expressam sons individuais da fala" (Gelb, 1976) e supõe que também para a criança isso seja dado a priori. Mas não é. No início do processo toda criança supõe que a escrita é uma outra forma de desenhar as coisas.

Vamos dar alguns exemplos que o professor pode reconhecer, na sua prática diária, mas não tinha até então como interpretar.

Pediu-se a uma criança, que aprendera a reproduzir a forma escrita do nome de sua mãe (Dalva), que escrevesse a palavra "mamãe", cuja forma ela não conhecia. Ela escreveu, com convicção, "Dalva". E, questionada em relação à inadequação da sua escrita, ficou perplexa com a incapacidade adulta de compreender uma coisa tão evidente, isto é, que "Dalva" e "mamãe" são a mesma pessoa e, portanto, a mesma escrita.

O que a criança não compreende é que a escrita representa a fala, o som das palavras, e não o objeto a que o nome se refere. De uma pesquisa realizada em Recife, reproduzimos as seguintes informações da entrevista ocorrida no início do ano letivo com uma criança cursando pela primeira vez a 1ª série:

Diante do par de palavras BOI - ARANHA

 

Experimentador: Nestes cartões estão escritas duas palavras: "boi" e "aranha". Onde você acha que está escrito boi, e onde está escrito "aranha"?

Criança: Aqui está escrito boi (apontando para a palavra "aranha") e aqui está escrito aranha (apontando para a palavra "boi").

Experimentador: Por que você acha que aqui ("boi") está escrito aranha e aqui ("aranha") está escrito boi?

Criança: Porque essa daqui tá pequena e esse daqui tá grande.Tia me ensinou que boi começa com A.

"Vê-se, portanto, aqui, o divórcio entre o conhecimento da letra e as hipóteses dessa criança a respeito da escrita. Para ela, a escrita devia conformar-se à sua concepção ainda realística da palavra, ou seja, coisas grandes têm nomes grandes e coisas pequenas têm nomes pequenos." (In Aprender pensando: contribuições da Psicologia cognitiva para a educação, SEE Pernambuco/ 1983)

Mas o fato é que, em vez de confirmar, a realidade dentro e fora da escola desmente seguidamente a teoria que a criança construiu sobre o que a escrita representa. Desmente e problematiza, obrigando a criança a construir uma nova teoria, novas hipóteses. Ao começar a se dar conta das características formais da escrita, a criança constrói então duas hipóteses que vão acompanhá-la por algum tempo durante o processo de alfabetização:

a) de que é preciso um número mínimo de letras - entre duas e quatro - para que esteja escrito alguma coisa; e,

b) de que é preciso um mínimo de variedade de caracteres para que uma série de letras "sirva para ler".

De início, a criança não faz uma diferenciação clara entre o sistema de representação do desenho (pictográfico) e o da escrita (alfabético), como se pode observar, a seguir, na escrita de Reginaldo.

Reginaldo, 6 anos

(22/8/84)

 

Reginaldo ainda não estabelece uma diferença clara entre o sistema de representação da escrita e do desenho. As letras que aparecem são as do seu nome, menos em "borboleta", onde usa as do nome de sua irmã Sandra.

No universo urbano, o contato com os dois sistemas - da escrita e do desenho - permite estabelecer progressivamente essa diferenciação. Mas, mesmo quando a criança já tem claro que "desenha-se com figuras" e "escreve-se com letras", a natureza do sistema alfabético ainda permanece um mistério a ser desvendado.

Ainda antes de supor a escrita como representação da fala, a criança faz várias tentativas de construir um sistema que se assemelhe formalmente à escrita adulta buscando registrar as diferenças entre as palavras através de diferenças na quantidade, na posição e na variação dos caracteres empregados para escrevê-las.Veja a escrita da Edinilda (22/8/84).

Edinilda, 7 anos

(22/8/84)

 

Edinilda avançou mais que Reginaldo. Ela supõe que "escreve-se com letras", mas ainda não descobriu que as letras representam sons. Sua hipótese - é preciso uma hipótese para produzir qualquer escrita - poderia ser descrita assim:

Para escrever (qualquer coisa) é preciso de sete  nove letras (o nome dela tem oito letras).

Mas não podem ser sempre as mesmas letras, nem na mesma posição. Por isso ela varia o máximo que pode dentro do seu limitado repertório, o que, às vezes, exige que ela invente algumas.

Edinilda já percebeu que a palavras diferentes correspondem escritas diferentes, mas não sabe a que atribuir essas diferenças, pois não descobriu ainda o que é que as letras representam.

Enquanto não encontra respostas satisfatórias para as duas perguntas fundamentais: "o que a escrita representa?" e "qual a estrutura do modo de representação da escrita?", a criança continua pensando e tentando adequar suas hipóteses às informações que recebe do mundo. A descoberta de que a escrita representa a fala leva a criança a formular uma hipótese ao mesmo tempo falsa e necessária: a hipótese silábica.

 

A hipótese silábica

A hipótese silábica é um salto qualitativo, uma daquelas "grandes reestruturações globais" de que nos fala Piaget. Um salto qualitativo tornado possível pelo acirramento das contradições entre as hipóteses anteriores da criança e as informações que a realidade lhe oferece.

O que caracteriza a hipótese silábica é a crença de que cada letra representa uma sílaba - a menor unidade de emissão sonora.Veja, a seguir, três amostras de escrita silábica.

A hipótese com a qual essa menina trabalha é a de que cada letra representa uma emissão sonora, isto é, uma sílaba oral. É o tipo de escrita que Emília Ferreiro chama silábica estrita. Cleonilda demonstra um razoável conhecimento do valor sonoro convencional das letras que, no entanto, ela adapta às necessidades de sua hipótese conceitual. A vogal "O", por exemplo, vale "TO" em gato, "BOR" e "BO" em borboleta,"LO" em cavalo e novamente "BO" em boi.

Lourivaldo, 8 anos

 

A escrita desse menino também é silábica. Mas, no caso dele, essa hipótese entra em conflito com outra: a hipótese da quantidade mínima de caracteres para que um conjunto de letras possa ser considerado uma palavra (no início do processo de alfabetização, as crianças supõem que uma única letra "não serve para ler"; o que varia de uma para outra é o número de letras tido como mínimo, em geral entre duas e quatro). O Lourivaldo exige três letras no mínimo, o que cria um problema na escrita dos monossílabos e dissílabos.A solução que ele encontrou foi agregar letras sem valor sonoro às palavras com menos de três sílabas, o que acabou criando, em "gato" e "boi", uma discrepância entre a intenção da escrita e a interpretação da leitura: na escrita a letra muda era a terceira, mas na hora de ler preferiu considerar como muda a letra do meio.  Há também preocupação com o valor sonoro convencional.

Daniel, 7 anos

(22/8/84)

 

Esta é uma escrita silábica bem mais difícil de reconhecer que as anteriores. Mas nesse caso é o conhecimento que a professora construiu observando a criança que possibilita a interpretação. Daniel estava vivendo um momento de conflito cognitivo.Vinha testando sua hipótese silábica em todas as palavras a que tinha acesso, isto é, todas as que alguém lia para ele, e ficava visivelmente aflito com as letras que sobravam. A forma que encontrou de acomodar a situação foi agregar letras mudas no final, mas esse arranjo não era, de modo algum, satisfatório. Seu desconforto durante a atividade era visível: recusou-se a ler "borboleta" e "boi" e foi preciso insistir muito para que lesse "cavalo" e "gato".

Dissemos que a hipótese silábica é falsa e necessária.Vamos analisar as duas partes dessa afirmação. Em primeiro lugar, a questão da falsidade. Supor que cada letra representa uma sílaba é falso com relação à concepção adulta da escrita, à convenção social, que é alfabética. Mas não resta dúvida de que é muito mais verdadeira que as hipóteses anteriores. Ela dá uma resposta verdadeira à primeira questão: "O que a escrita representa?". O salto qualitativo é a descoberta de que a escrita representa os sons da fala. Junto com a compreensão da natureza do objeto representado emerge a necessidade de estabelecer um critério de correspondência. Não é mais possível à criança atribuir globalmente a palavra falada à sua escrita. Impõe-se a necessidade de partir tanto a fala quanto a escrita, e fazer corresponder as duas séries de fragmentos. Nesse esforço, a criança comete um erro: supõe que a menor unidade da língua é a sílaba. Um "erro" aliás muito lógico, se pensarmos na impossibilidade de emitir o fonema isolado.A hipótese silábica é, então, parcialmente falsa, mas necessária. Necessária como são necessários "erros construtivos" no caminho em direção ao conhecimento objetivo.

As pesquisas de Emília Ferreiro, em 1982, com novecentas crianças que cursavam pela primeira vez a 1ª série da escola pública em várias cidades do México, mostram que mais ou menos 85% das crianças estudadas que aprenderam a ler utilizavam a hipótese silábica, em pelo menos uma das quatro entrevistas realizadas durante o ano. Isto é, a maioria das crianças precisou desse "erro construtivo" para chegar ao sistema alfabético. Como o intervalo entre as entrevistas era de 60 a 80 dias, fica difícil saber se os 15% restantes passaram ou não por esse erro construtivo. Mas uma coisa é certa: é impossível chegar à compreensão do sistema alfabético da escrita sem descobrir, em algum momento, que o que a escrita representa é a fala.

Mas, no processo de alfabetização, a hipótese silábica é, ao mesmo tempo, um grande avanço conceitual e uma enorme fonte de conflito cognitivo.

"No entanto, a hipótese silábica cria suas próprias condições de contradição: contradição entre o controle silábico e a quantidade mínima de letras que uma escrita deve possuir para ser interpretável (por exemplo, o monossílabo deveria se escrever com uma única letra, mas quando se coloca uma letra só, o escrito 'não pode ser lido', ou seja, não é interpretável); além disso, há contradição entre a interpretação silábica e as escritas produzidas pelos adultos (que têm sempre mais letras do que as que a hipótese silábica permite antecipar).

No mesmo período - embora não necessariamente ao mesmo tempo - as letras podem começar a adquirir valores sonoros (silábicos) relativamente estáveis, o que leva a uma correspondência com o eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantes entre as palavras começam a se exprimir por letras semelhantes. E isto também gera suas formas particulares de conflito." (Emilia Ferreiro).

Imaginem como fica conflitante para a criança defrontar-se com o fato de que, por exemplo, sua escrita para "pato" (AO) ficou igual à que ela produziu para "gato".Vocês devem estar se perguntando por que isso não foi percebido até então, não se tornou observável antes. A resposta é que não podíamos "ver" a escrita silábica por razões semelhantes à de que a humanidade não pôde rever a idéia de uma Terra plana enquanto não admitiu que esta é que girava em torno do Sol, e não o contrário. Foi necessária uma concepção dialética do processo de aprendizagem, uma concepção que permitisse ver a ação do aprendiz construindo o seu conhecimento, onde o professor aparece não mais como o que controla a aprendizagem do aluno, e sim como um mediador entre aquele que aprende e o conteúdo a ser aprendido. Só a partir desse novo referencial é possível imaginar que a criança aprenda algo que não foi ensinado pelo professor.

 

A caminho da hipótese alfabética

Vamos recapitular para não perder o fio.Vimos emergir das pesquisas uma criança que se esforça para compreender a escrita. Que começa diferenciando o sistema de representação da escrita do sistema de representação do desenho. Que tenta várias abordagens globais, numa busca consistente da lógica do sistema, até descobrir - o que implica uma mudança violenta de critérios - que a escrita não representa o objeto a que se refere, e sim o desenho sonoro do seu nome. Que nesse momento costuma aparecer uma hipótese conceitual que atribui a cada letra escrita uma sílaba oral. Que essa hipótese gera inúmeros conflitos cognitivos, tanto com as informações que recebe do mundo como com as hipóteses de quantidade e variedade mínima de caracteres construídas pela própria criança.Veja a seguir as amostras de escrita da Cleonilda, do Lourivaldo e do Daniel, de 22/8/84, nas quais isso aparece com clareza.

 

 Daniel escreve alfabeticamente as palavras, mas regride ao nível silábico-alfabético (de transição) na frase. É possível que isso tenha acontecido porque estava preocupado com a separação das palavras. Foi o único que não escreveu tudo junto, como seria normal. O que é coerente com seu estilo: muito atento à forma adulta de escrever, buscando sempre reproduzir suas características, mesmo sem compreender.

As escritas silábica e silábico-alfabética têm sido encaradas como patológicas pela escola que não dispõe de conhecimento para perceber seu caráter evolutivo.

Se o professor compreende a hipótese com que a criança está trabalhando, passa a ser possível problematizá-la, acirrar - através de informações adequadas - as contradições que vão gerar os avanços necessários para a compreensão do sistema alfabético. E foi isso que aconteceu com Cleonilda, Lourivaldo e Daniel, como se pode ver nas amostras de escrita de 30/11/84 (na coluna da direita do quadro anterior).

Cleonilda, que em noventa dias de aula estava alfabetizada, não é capaz de articular oralmente nenhum encontro consonantal - nem no seu próprio nome.Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, das crianças que se alfabetizaram nesse grupo era a que menos erros de escrita cometia. Ela jamais escrevia "comi", para "come", como o Lourivaldo, que falava corretamente.

Reginaldo, como se pode ver no quadro seguinte, pela evolução da cópia de seu nome, não tem orientação espacial da escrita, "come" letras, espelha letras, tem traçado inseguro, é incapaz de manter a ordem das letras na cópia (e tinha dificuldade para segurar o lápis)...

 

No entanto, os seus problemas perceptivo-motores desapareceram, como por encanto, quando ele descobriu o quê, exatamente, as letras representavam. Pensem bem, que importância tem a posição ou a ordem das letras, se para nós elas são apenas desenhos?

O que este texto tentou informar em linhas gerais é como é que se aprende a ler.Tentamos mostrar que as dificuldades desse processo são muito mais de natureza conceitual e muito menos perceptual, conforme pensávamos antes. E, como nossa prática se baseava sobre o que sabíamos, é preciso repensá-la, não?

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